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Godard preserva seu ar inescrutável em Cannes

18 mai 2010 - 15h13
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Manohla Dargis
Direto de Cannes

Se recordo corretamente - e minha cabeça está tão repleta de palavras e imagens que é difícil ter certeza -, a primeira imagem de Film Socialism, o novo filme de Jean-Luc Godard, mostra dois papagaios de cabeça vermelha, pousados lado a lado em um galho de árvore. Os papagaios estão entre os diversos animais que aparecem no filme, exibido para a imprensa segunda-feira (17) de manhã no Festival de Cinema de Cannes; há também dois gatos engraçados e falastrões (cujos miados são imitados por uma moça que assiste a um vídeo sobre eles em seu laptop), bem como uma lhama e um jumento. Cercando esses animas, há uma multidão de seres humanos que falam, citam e tagarelam sem parar, em francês, alemão, russo, inglês e árabe, entre outros idiomas.

De forma bem humorada, perversa e contrastante, as palavras finais do filme são "sem comentário", que surgem, em inglês, em um letreiro que serve como declaração e conduzem os 101 minutos de sons e imagens da obra a um final abrupto.

Godard, 79, deveria ter concedido uma entrevista coletiva depois da exibição, mas seguiu o conselho expresso em seu trabalho e não apareceu. Ainda que o boato de que ele não compareceria tivesse circulado antes da exibição, dezenas de jornalistas se encaminharam à sala de imprensa assim que o filme acabou, para verificar se um representante apareceria com alguma explicação. Nada. Nem mesmo um bilhete. Sem comentário.

De acordo com o jornal francês Libération, Godard enviou um fax a Thierry Fremaux, o diretor do festival, declarando que "problemas do tipo grego" (uma provável referência à crise financeira da Grécia) o haviam impedido de comparecer, e acrescentando que, pelo festival de Cannes, estava disposto a ir até a morte ¿mas nem um passo a mais. O diretor se despedia com um "amistosamente, Jean-Luc Godard".

Qualquer filme novo de Godard é ocasião digna de nota, e a exibição inicial estava lotada, e com telespectadores preparados para alguma forma de dificuldade. Na sexta-feira, o jornal britânico Independent reportou que as legendas em inglês seriam em, nas palavras da publicação, "inglês navajo", para tentar descrever a forma fraturada de expressão que os indígenas costumavam empregar em westerns de Hollywood.

"Se um personagem estiver dizendo 'me dê seu relógio', a legenda dirá 'eu, você, relógio'", explicava o jornal. Nos anos 50, Godard trabalhou no escritório de publicidade do estúdio 20th Century Fox em Paris, e sabe como agitar as coisas. (Já havia tentado sua potencial audiência com um thriller que mostra o filme em fast forward muito acelerado; o trabalho completo poderá ser assistido até a quarta-feira no site FilmoTV.fr.)

Ainda não consegui classificar minha reação ao filme - que parece ter sido rodado tanto em vídeo de baixa qualidade quanto com câmeras digitais de alta definição - e por isso serei breve, por enquanto.

Estruturalmente, ele pode ser dividido em três partes, a primeira das quais passada em um navio de cruzeiro no Mediterrâneo, no qual os passageiros, quase todos brancos, comem, jogam e convivem. Entre os viajantes há diversos homens e mulheres, bem como uma adolescente e um menino mais novo, que conversam entre si em idiomas que em geral passam sem tradução.

Como prometido, as legendas em inglês eram curtas, com palavras às vezes coladas ou separadas por espaços muito largos: "semcrime semsangue", "alemão judeus negro", "história impossível", "kamikaze vento divino", "direito de retorno". De vez em quando, a cantora Patti Smith aparece, cantando em uma cabine do navio ou passeando no convés e corredores, com um violão nas mãos.

A segunda seção se passa em um pequeno posto de gasolina e na casa a ele anexa, onde duas mulheres, uma delas branca e possivelmente jornalista e a segunda negra e operadora de câmera, parecem estar acompanhando os donos do posto, uma família francesa de quatro pessoas. (Em uma das paredes externas está pintado o nome JJ Martin.) Nesse bloco, a discussão gira em torno de liberdade, igualdade, fraternidade, e com esses ideais ocorre uma invocação à Revolução Francesa.

A terceira seção transcorre em diversos locais: Egito, Palestina, Odessa. Hell As (falarei mais sobre isso adiante), Nápoles e Barcelona. "Hell As" se refere à Hélade, o termo pelo qual os gregos descreviam seu país, mas é também trocadilho com a palavra inglesa "Hell" inferno e com a exclamação francesa "hélas", termo que Godard havia usado como título em um de seus trabalhos anteriores, "Hélas Pour Moi", no qual recria o mito de Anfitrião e Alcmene. Ao longo do caminho, também há referências aos judeus, a Hollywood e ao Holocausto.

Fica claro que será necessário assistir a Film Socialism muitas outras vezes, bem como melhorar meu francês e encontrar uma versão do filme com melhores legendas, antes que eu possa realmente entender do que trata esse trabalho. São assim os complicados prazeres do cinema de Godard: por mais privada e hermética que seja sua linguagem cinematográfica, por virtude da densidade de sua linguagem, bem como da beleza visual dos filmes e das charadas intelectuais que propõem, seus filmes capturam a atenção do espectador (ou o afastam sem remorso).

Imagino que Film Socialism deva demorar um bom tempo a chegar aos cinemas dos Estados Unidos, mas, se você por acaso deseja se preparar, sugiro que assista a uma entrevista realizada na quinta-feira com Godard pelo site Telerama.fr, que inclui a seguinte citação do filme: "Os norte-americanos libertaram a Europa ao torná-la dependente".

Cartaz do novo filme de Godard
Cartaz do novo filme de Godard
Foto: Divulgação
The New York Times
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