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Diretor de 'Quebrando o Tabu': quase todo usuário acaba traficando

Diretor de 'Quebrando o Tabu': quase todo usuário acaba traficando

27 set 2011 - 16h54
(atualizado em 3/10/2011 às 05h24)
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David Shalom

Fernando Grostein, 28 anos, diretor de Quebrando o Tabu, filme exibido gratuitamente pelo Terra nesta semana, afirmou em entrevista exclusiva que o temor nutrido por usuários de maconha em relação à ilegalidade da droga acaba levando a maioria deles a se tornar um pequeno traficante, por questões práticas.

"O usuário não quer se arriscar toda hora indo a uma boca de fumo para pegar a droga com o traficante", disse, usando como exemplo um trecho do documentário no qual o protagonista Fernando Henrique Cardoso debate o tema com o médico Dráuzio Varella. "Ele pega de um amigo, o amigo divide com o outro amigo, então quase todo usuário começa a traficar".

Para o cineasta, esse é um dos muitos motivos que levam à necessidade de um debate sério em torno do tema, pois, acredita, não faz sentido trancafiar em um presídio uma pessoa que apenas faz uso da droga. "Dizem que não sei quantos porcento das pessoas que fumam maconha podem ficar esquizofrênicas, só que esquecem de falar que existe também a chance de o cara que usa álcool virar alcoólatra, do que usa açúcar virar obeso. Quer dizer, não é por isso que a gente vai transformar em crime algo que, para mim, deveria ser encarado como questão de saúde pública".

Confira a entrevista na íntegra:

Terra - Diversas pesquisas realizadas nos últimos anos indicam que a população brasileira é, no geral, contra a descriminalização da maconha. Você vê o País próximo de uma mudança brusca em relação ao debate sobre o tema ou este está apenas começando?

Fernando Grostein Andrade - Eu acho que nunca estivemos tão próximos de mudar, o que não significa que esteja perto. Ainda há muito o que fazer, principalmente porque a população é temerosa por não ter acesso à informação - não digo à informação moral, mas à científica. Outro ponto é que a forma como se coloca o assunto muda tudo também. Por exemplo, uma hipótese minha, se você fizer uma pesquisa perguntando se as pessoas são a favor de descriminalizar as drogas, elas vão dizer que não. Agora, se você fizer a mesma pergunta de outra forma, questionando-as se são a favor de prender o dependente de droga, eu acho que elas vão dizer não também. É a mesma pergunta, com a diferença de ser colocada de formas diferentes.

Terra - Há muita confusão por parte da população em relação à diferença entre descriminalizar e legalizar...

Fernando - Sim, isso acontece muito.

Terra - Ao mesmo tempo em que sociólogos, acadêmicos e artistas defendem cada vez mais a descriminalização da maconha, têm sido mais e mais frequentes as divulgações de estudos psiquiátricos que rechaçam as benesses desse debate, além de discursos desses profissionais bradando pela manutenção das leis como agora estão. Esses estudos e discursos ajudam a promover o debate ou simplesmente fazem com que ele permaneça no mesmo lugar?

Fernando - Para mim, esses psiquiatras aos quais você se refere são aqueles que defendem sempre as mesmas posições em relação ao tema drogas. E eles fazem confusões terríveis, como divulgar uma pesquisa afirmando que jovens que usam maconha antes dos 15 anos desenvolvem não sei o quê. Mas ninguém está defendendo que o jovem de 15 anos use maconha, entende? Isso (que eles fazem) não é produtivo. Ou ainda, dizem que não sei quantos porcento das pessoas que fumam maconha podem ficar esquizofrênicas, só que esquecem de falar que existe também a chance de o cara que usa álcool virar alcoólatra, do que usa açúcar virar obeso. Quer dizer, não é por isso que a gente vai tranformar em crime algo que, para mim, deveria ser encarado como questão de saúde pública. É necessário tomar muito cuidado ao se divulgar essas estatísticas para não ocorrer nenhuma análise torta em relação ao tema.

Terra - A própria lei do usuário no Brasil é muito vaga, não estabelecendo especificidades para diferenciar o usuário do traficante. Recentemente, inclusive, o jornal Folha de S. Paulo publicou uma reportagem na qual afirmava que a lei não só não melhorou a situação do usuário, como acabou piorando-a, já que muitos deles passaram a ser enquadrados no tráfico de drogas, prática que teve suas penas endurecidas. A lei brasileira é burra?

Fernando - Sim, porque ela deixa na mão do juiz e do policial a decisão de a pessoa ser usuária ou traficante. O próprio (médico) Dráuzio Varella explica em Quebrando o Tabu que essa distinção entre usuário e traficante é teórica. Como é um crime possuir a droga, o usuário não quer se arriscar toda hora indo a uma boca de fumo para pegá-la com o traficante. Ele pega de um amigo, o amigo divide com o outro amigo, então, quase todo usuário começa a traficar, entendeu? Existe também uma diferença muito grande entre isso e dizer que o usuário porta armas para disputar território de vendas. Ou ainda, pessoas que são presas em manufaturas de droga como se elas fossem donas da droga, mas que estão ali somente para exercer um trabalho, ilegal, mas um trabalho. Não é o fato de o sujeito estar ali embalando 100 kg de crack que o torna dono da droga. Quer dizer, os critérios já são muito difíceis, e a lei, por ser muito subjetiva, faz com que o policial tenha de fazer uma avaliação que não é da sua competência.

Terra - Nossa vizinha, a Argentina, possui uma lei mais específica, que chegou a liberar o plantio de maconha, algo visto como tráfico pela lei brasileira. Em suas pesquisas para Quebrando o Tabu, você a viu como mais avançada nesse debate?

Fernando - Honestamente, não tenho conhecimento da situação da Argentina nesse debate. Então, para evitar ser superficial, prefiro não comentá-la.

Terra - A Holanda, o principal exemplo nessa questão do uso livre da maconha, tem propostas de lei para vetar a venda da droga para turistas e até para encerrar de vez sua comercialização nos famosos coffee shops, que permitem seu uso. De fato, é bastante estranha a situação desse país em relação ao tema, já que o comércio é permitido, mas a produção não. Como você vê essa possível mudança no país que se tornou símbolo da descriminalização da maconha no mundo?

Fernando - Parece que está ocorrendo uma ascensão de conservadores no poder da Holanda e a mudança na política de drogas está muito mais ligada a isso do que a qualquer outra coisa. Foi a impressão que eu tive a partir das conversas realizadas com especialistas de lá. Ao mesmo tempo, todos parecem achar pouco provável que se consiga acabar com os coffee shops. O ponto é que o problema real não está sendo encarado de frente, que é como regulamentar a produção, já que é muito difícil vender um produto sem legalizá-lo. Isso faz com que a produção permaneça com o crime organizado, o que não é bom.

Terra - Muitos países que haviam feito leis para beneficiar o usuário na Europa estão começando a revê-las. Ao mesmo tempo em que o debate começa a se fortalecer no Brasil, você vê um retrocesso deste nos países inicialmente mais liberais em relação ao tema?

Fernando- Eu acho que há avanços e retrocessos. A lei na Suíça está avançando e a população está muito satisfeita; nos EUA, 16 Estados já legalizaram a maconha para fins medicinais. Então, eu não sei se é possível dizer que está havendo um retrocesso, pois temos tanto indicativos de avanços quanto de retrocessos. Mesmo em países mais conservadores como o Irã, onde existia o hábito de se enforcar usuários, hoje em dia há políticas mais modernas, como programas de substituição de seringas e de substituição de substâncias por metadona (narcótico derivado do ópio, com propriedades semelhantes às da morfina, usado no tratamento de dependentes químicos). Eu acho que, no geral, o cenário global é de avanço.

Terra - Durante a entrevista concedida no estúdio do Terra na segunda-feira (26), você falou muito do filme como forma de enriquecer o debate também entre pais e filhos. Como a sua família encarou esse projeto?

Fernando - Para mim, essa conversa sempre foi muito aberta, muito franca. Quando eu tinha 11 anos, li aquele livro Eu, Christiane F., 13 Anos, Drogada e Prostituída, e minha mãe nunca viu isso como algo negativo. Pelo contrário, achou bom. Isso fez com que eu ganhasse uma boa percepção do risco das drogas na vida das pessoas.

Terra - Alguns críticos têm classificado Quebrando o Tabu como parcial. Naturalmente, por trazer para o debate um tema tão controverso, há certa necessidade de assumir um lado, senão ele dificilmente avança. Ainda assim, como você vê essas críticas?

Fernando - Olha, eu acho que cada um pode fazer seu filme do jeito que quiser (risos). O meu foi escolher pessoas que pensam de acordo com os ideais que eu defendo, mas com pensamentos diferentes em relação a eles. Isso forneceu ao trabalho uma pluralidade de pensamentos muito grande. As pessoas já estão carecas de saber os argumentos contra, então me dediquei mais a mostrar aqueles a favor.

Terra - Para terminar, por que a escolha de Gael García Bernal como representante dos artistas no debate? Houve algum nome que vocês tentaram incluir no filme que acabou não aceitando o convite?

Fernando - Não teve nenhum nome que a gente pensou que não tenha colaborado com uma entrevista, as pessoas estavam muito engajadas em contribuir com o debate do assunto. Quanto ao Gael, eu queria escolher alguém que desse o olhar da juventude do México, que é um país onde a democracia está sendo destruída por causa do narcotráfico. Então, eu achei que, por ser um artista respeitado e muito inteligente, além de jovem, ele reunia boas características para falar sobre o tema.

Fernando Grostein foi o responsável pelo documentário que debate a descriminalização da maconha
Fernando Grostein foi o responsável pelo documentário que debate a descriminalização da maconha
Foto: Fernando Borges / Terra
Fonte: Terra
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