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Clichês cariocas são revistos no olhar de diretor americano

30 set 2010 - 13h15
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Carol Almeida
Direto do Rio

No meio do caminho entre a praia de Ipanema e a Lagoa Rodrigo de Freitas, há um estúdio de trabalho cujo corredor começa com grandes cartazes de cinema e termina em uma parede ilustrada por vários desenhos, assinados por duas artistas chamadas Miranda e Capitu. São esses os nomes das irmãs gêmeas de 5 anos de idade, filhas e ídolos maiores de Jonathan Nossiter, diretor de cinema que nasceu nos Estados Unidos, morou boa parte de sua vida em Paris e agora é residente da cidade do Rio de Janeiro, com título de eleitor e tudo mais.

Em uma conversa sobre seu mais novo filme, Rio, Sex, Comedy, Nossiter, cujo último longa-metragem foi o premiado documentário Mondovino, falou com exclusividade ao Terra sobre suas escolhas pessoais, a cidade do Rio de Janeiro, o olhar estrangeiro, a opção de se filmar durante longos cinco meses e os personagens desse filme que, segundo ele, pretende ser uma "comédia subversiva".

Filmado em um curioso e atípico esquema de cooperativa, em que mais de uma dezena de pessoas são co-proprietárias do filme, incluindo aí parte do elenco, Rio, Sex, Comedy tem sua première no Festival do Rio nesta sexta-feira (1) e traz uma trama que cruza três histórias distintas que se passam no Rio de Janeiro. Histórias guiadas pelos personagens de Bill Pulman, no papel de um embaixador americano, Charlotte Rampling, como uma cirurgiã plástica inglesa, e Irene Jacob, vivendo uma antropóloga francesa. Todos esses atores estarão no Rio para a première do filme.

Confira abaixo a entrevista com o cineasta.

Antes de mais nada, por que você decidiu morar no Rio de Janeiro?
Existem dois motivos principais. Primeiro que quando cheguei aqui percebi que havia uma coisa na cidade em comum com a Nova York dos anos 1970. Uma energia maluca, a cada esquina uma contradição. Achei rica humanamente essa mistura de coisas desiguais e, como cineasta, isso pra mim era incrível. Eu, que já lamentava a desaparição de Nova York, que virou somente um centro comercial, me encantei com o Rio. Depois casei em Paris com uma paulista e aí quando ela engravidou de gêmeas , nos olhamos e pensamos: de jeito nenhum nossas crianças vão nascer e crescer numa cidade onde eles odeiam crianças. Cachorros são super bem vindos, mas crianças não. Por esses dois motivos o Rio virou uma escolha fácil.

Filmar no Rio seria então inevitável.
Eu estava querendo muito fazer um filme aqui. Acho muito difícil hoje fazer um filme na Europa ou nos Estados Unidos, porque tudo ali já está tão filmado que se torna difícil lançar um olhar novo. Pra Rio, Sex, Comedy fiz só um dia de filmagens em Paris, uma cena que não entrou no filme, porque eu estava péssimo naquele dia. Durante aquelas filmagens, tive a impressão de ser um impostor, porque cada esquina de Paris já foi filmada tantas vezes, de tantos jeitos... Pra mim o prazer de um filme é a troca entre o olhar do ser humano e um contexto físico. Isso faz o cinema ter uma força e complexidade que outras artes, menos talvez os quadrinhos, não têm. Então o prazer de filmar o Rio pra mim foi sem limites e talvez por isso passamos cinco meses filmando.

O Rio de Janeiro é vítima de uma série de clichês que se constrói sobre a cidade e, ao mesmo tempo, se aproveita desses clichês. Como cineasta, de que forma lidar com isso?
É muito esquisito, porque há uma reciclagem permanente de clichês. E acho que esse uso é até pior entre os brasileiros do que entre os estrangeiros. A diferença entre uma cidade filmada durante 60, 70 anos por uns 10 mil cineastas, como é o caso, por exemplo, de Paris e Nova York, e uma cidade como o Rio que até já foi filmada várias vezes muito bem, mas que ainda tem muito menos olhar de cineasta, é que a coisa do clichê vira um elemento interessante. Sobretudo para uma comédia subversiva. Acho que isso abre espaço para você brincar com o clichê e tentar invertê-lo. E este meu filme assume totalmente a postura do olhar do gringo, o olhar é dos personagens estrangeiros, até porque seria absurdo pra mim pretender olhar a cidade por dentro depois de somente cinco anos vivendo aqui. Ainda estou engatinhando na cidade, levaria umas duas vidas pra começar a entender o Rio de verdade, por dentro.

Então há uma brincadeira com os preconceitos?
Sim, esse olhar do filme abriu um espaço de descobrimento, por um lado muito inocente e transparente, mas também por outro sempre lidando com essa possibilidade de brincar com o preconceito que o forasteiro, seja ele gringo ou brasileiro, tem do Rio.

Como foi o trabalho em campo?
Sempre misturei em meu trabalho documentário com ficção e isso foi um dos maiores prazeres deste filme, misturar pessoas verdadeiras com personagens ficcionais. A gente assistiu, por exemplo, a vários Favela Tours. E não é preciso muita imaginação para entender que vários moradores da Rocinha acham aquilo de um insulto profundo, porque é uma sensação de ser animal em um zoológico. O Soca Fagundes, que é um cara incrível e trabalha com várias mídias, é totalmente engajado politicamente dentro da Rocinha e por isso ele lida muito com o olhar do estrangeiro. Ele foi nosso guia e terminou virando personagem no filme. Porque a visão dele, de como o mal entendido fica, é uma coisa única.

Você acredita que há também uma visão estetizada da miséria e que, desde Cidade de Deus, se criou uma maneira particular de se filmar a pobreza?
Bem, já vi vários filmes que trataram favelas de um jeito estetizante e, ao lado de outras pessoas como eu, classe média, estrangeiro, pensei na hora "Ah, coitado deles, olha os bandidos", mas fica tudo lindinho no cinema. E conhecendo esses lugares você vê que não é nada daquilo. Porque existem apenas dois lados explorados pelos filmes: ou você percebe aquelas pessoas como bandidos, ou como pobre coitados. O fato de Rio, Sex, Comedy ser em parte um pouco documental, é também uma tentativa de tirar a camada de exploração sentimentalista ou violenta das favelas.

O título do filme traz o gênero dele, comédia. Isso foi uma brincadeira?
Sim, há um conceito satírico-social no filme. O título é totalmente irônico, até pensamos em mudá-lo, mas todo mundo concordou que, mesmo com todos os problemas que ele vai levar, ficaria melhor assim

Explique um pouco o processo de cooperativa do filme.
Os atores participaram desde o começo da construção do roteiro, colocando coisas pessoais da vida deles, dento de um contexto ficcional. E eles são co-produtores do filme. Somos todos co-proprietários e, mesmo trabalhando com poucos recursos, fizemos tudo com muita vontade de compartilhar as coisas, ficando livres para falar o que quiséssemos. O filme pode até ser péssimo, mas ele é 100% expressão de nossa vontade.

A personagem da atriz Charlotte Rampling é uma cirurgiã plástica e o filme se passa no Rio de Janeiro, onde a expressão do belo, na cidade e nas pessoas, é uma constante. Há uma intenção de reflexão sobre essa necessidade de se moldar a imagem?
Sim, de fato. Se o filme faz retratos da cidade, uma das coisas que existe aqui é essa tensão entre a estética, a beleza, das pessoas e da cidade, e problemas que ficam ao redor. Cirurgia plástica chama diretamente a atenção para essas contradições. A Charlotte veio ao Rio duas vezes antes de começarmos a rodar. E foi interessante porque, ao encontrar pessoas brilhantes como o próprio Ivo Pitangy, que participa do filme, quebramos alguns de nossos próprios preconceitos com a questão da cirurgia plástica.

Quanto a Bill Pulman, você chamou um ex-presidente americano (um dos papéis mais conhecidos do ator é como presidente dos EUA em Independence Day) para viver um embaixador americano. Isso foi uma piada?
(Risos). Sim, foi uma piada com ele.

E sobre Irene Jacob, como foi o contato?
Temos uma amizade de 15 anos, mas nunca tinha tido oportunidade antes de trabalhar com ela. A personagem dela é ingrata porque não há nenhum lado heróico nela. Irene faz uma intelectual francesa de esquerda que é muito mais engajada em sua cabeça do que em suas ações. E pra fazer isso é preciso coragem de ir a fundo nisso. A Irene fez uma coisa que admiro profundamente. Ela foi fundo nas partes desagradáveis e hipócritas da personagem, acreditando que há uma graça nisso se você interpreta aquilo com honra. Já sei que há alguns franceses incomodados com esse papel dela. Porque é aquela coisa, você acha que vai chegar no País e arrumar as desigualdades sociais, mas a realidade é sempre mais complexa. Sobretudo a realidade brasileira.

Jonathan Nossiter no seu apartamento em Ipanema
Jonathan Nossiter no seu apartamento em Ipanema
Foto: Carol Almeida / Terra
Fonte: Terra
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