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"É preciso rever conceito de democracia", diz mulher de Saramago

6 out 2010 - 15h02
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Carol Almeida
Direto do Rio

A primeira exibição do documentário José & Pilar foi de longe uma das sessões mais emotivas do Festival do Rio este ano ano. O filme é de Miguel Gonçales Mendes, jovem diretor, sobre essa entidade única que foi e ainda é o escritor José Saramago e a jornalista Pilar Del Río. Os aplausos se demoraram enquanto algumas lágrimas caiam discretas, emudecidas por uma estranha sensação de familiaridade com os protagonistas daquela que é, sobretudo, uma história de amor. A lembrar que o documentário estará na Mostra de São Paulo, que começa no dia 23 outubro.

Saramago, escritor português que morreu no último dia 18 de junho deste ano, até hoje é apresentado com o subtítulo "Nobel de literatura da língua portuguesa". Pilar, jornalista espanhola que por mais de 20 anos foi casada com Saramago, vive intensamente o presente de divulgar a obra do escritor a partir da Fundação José Saramago. Ambos ateus, comunistas e fundamentalmente preocupados com questões dos direitos humanos. Numa entrevista exclusiva ao Terra, a mulher que no filme se mostra como uma parte indissociável do autor com quem dividia os pensamentos, conversa sobre os bastidores da filmagem, "Joselito", trocas e, claro, políticas. Confira abaixo.

De que maneira o Miguel entrou em contato com vocês e conseguiu convencê-los a passar tanto tempo em filmagens (foram quatro anos de gravações)?
Com uma insistência insistentemente educada. Esse filme era pra ser um documentário diferente do que ficou pronto agora. No começo eram apenas algumas entrevistas, mas houve uma evolução natural e lógica das coisas. Passamos então a conviver durante mais tempo. E o filme foi feito com a mesma educação e sentido de dignidade que havia desde o princípio, quando ele entrou em contato. O Miguel fez uma montagem de grande sensibilidade, esse é um filme que respeita os seres humanos. Porque nos mostra em nossos momentos mais íntimos e mais bonitos, porém sem intromissões, como algumas pessoas gostariam de ver. Porque este é um filme que dignifica o espectador.

Nesse longo período de filmagens, se criou algum tipo de relação paterna ou materna com o diretor Miguel e a equipe?
Sim, em vários momentos eu estava completamente zangada com ele (risos). Porque com cinema se mexe muito com cabos e são vários cabos que eles usam. Muitas vezes eles deixavam tudo pelo meio da sala. Mas acho que essa é uma característica das pessoas jovens, deixar tudo pelo meio.

O encontro entre você e Saramago lembra a história da atriz Ingrid Bergman, que era casada quando assistiu a Roma, Cidade Aberta, de Roberto Rossellini, e se apaixonou imediatamente pelo diretor, indo encontrar aquele desconhecido na Itália, se divorciando do ex-marido e se casando com o cineasta. Aconteceu algo semelhante com você e Saramago? Se apaixonou primeiro pelas ideias dele?
Primeiro eu conheci o escritor, depois o homem. Fui fazer o percurso do livro O Ano da Morte de Ricardo Reis (de 1984) em que o personagem volta a Lisboa e, como uma pessoa cortês, queria agradecer ao escritor por aquela obra. Não foi uma relação muito clara de começo, mas sabíamos que algo muito importante havia ocorrido em nossas vidas e que esse algo seria para sempre.

Há um momento no filme em que Saramago diz: "Eu tenho ideias pra novelas e Pilar tem ideias pra vida". Mas uma coisa não depende da outra, tal como vocês se completavam?

Creio que todos os seres humanos provem uns aos outros. Uns em maior medida que outros. Pra mim, Saramago me deu muito mais coisas que eu pude proporcionar a ele. Mas o que proporcionei a ele foi esse sentido mais prático e uma certa desinibição. A grande diferença, portanto, é que de "Senhor Saramago", ele passou a ser "Joselito". E é porque ele olhava para a vida que ele tinha ideias para novelas. A única coisa pra qual ele não olhava era: o que vamos almoçar hoje? Essa era a minha parte.

Você ainda recebe cartas para Saramago?
Sim. Porque meses depois de morto, ele não está de todo morto. Assim como antes de nascer, não se está de todo vivo. Em todos os dias 18 (data da morte de Saramago) a Fundação promove encontros, para conversar, celebrar a vida. E no dia 18 de agosto, dois meses após a morte de Saramago, aconteceu um encontro autoconvocado na Biblioteca de Lanzarote (que fica nas Ilhas Canárias, onde Saramago viveu seus últimos anos e morreu), em que havia mais de 100 pessoas. E foi bonito porque as pessoas levaram flores e presentes. Mas o que mais me emocionou foi uma mulher maravilhosa que levou um cavalo de cristal para José. Dois meses depois que Saramago havia morrido chegou uma leitora para dar de presente a ele um cavalo de cristal. Achei isso lindo.

Ao assistir ao filme, algo na edição lhe foi revelado? Algo que você não havia percebido em sua vivência com Saramago?
Não creio que nada de novo me foi revelado. Mas sim, fiquei surpreendida com o olhar do diretor, a beleza de algumas imagens. Há dois momentos do filme que me tocaram profundamente: um quando ele (Saramago) está lendo o final de O Evangelho segundo Jesus Cristo em português e eu em espanhol. E o que se vê é uma montanha. Em outro momento, estamos trabalhando em A Viagem do Elefante e eu estou lendo a tradução em espanhol e ele está lendo em português. Essa cumplicidade dos dois idiomas é maravilhosa.

Em que medida essa convivência entre os dois idiomas, tão importante para a vida de vocês, acrescentou ao relacionamento?
O que aconteceu foi que José me ofereceu o idioma, o português, e ofereci a ele um continente. Estou falando da América, desta América Latina. O Brasil fazia parte de sua experiência, mas a América Latina não fazia parte de sua biografia, como fazia parte da minha.

A se falar em América Latina, você acredita que, nesses últimos anos, há alguma mudança de vivência política do continente?
Acho que finalmente se está incorporando ao poder na América Latina pessoas de fora das oligarquias que sempre governaram por aqui. E essas pessoas são profundamente criticadas pelos meios de comunicação que representam as mesmas oligarquias. Existem populações inteiras na América que ainda vivem como escravos e que, aos poucos, começam a se incorporar à sociedade. Existe um processo de co-direção da sociedade. O problema é que quando as oligarquias dirigiam a América Latina, os meios de comunicação não as criticavam e não se colocava nesses governos o epíteto de ditadura.

Você tem acompanhado o debate político no Brasil?
Sim, e acho que está acontecendo uma coisa muito séria. O povo vota em quem quiser, extrema direita, extrema esquerda.... A questão é que, dentro desse processo, não sei se todos estão cientes de tudo que acontece. Fernando Collor de Mello, por exemplo, foi eleito pelos brasileiros em 1989, porém houve uma operação de marketing forte para que isso acontecesse. E isso é o que se chama hoje de democracia. Ou seria uma campanha de marketing que anula a vontade e a capacidade das pessoas pensarem? E quando, por exemplo, se impõe ao meu próprio presidente na Espanha que ele faça coisas segundo os interesses de multinacionais, que ditam as normas de governo, isso também chamam de democracia.

É preciso rever o conceito?
Acho que é preciso rever o conceito de democracia como participação de todos. Essa questão de normas é muito séria. Na Espanha, o espaço do legislativo se chama Congresso dos Deputados. Recentemente entramos numa briga para que o nome da casa fosse mudado para Congresso dos Deputados e das Deputadas. E eles disseram: "Por que isso? Tanto faz o nome". Tudo bem, se "tanto faz o nome" por que não então colocar Congresso das Deputadas? Outro exemplo: agora na Espanha com a legalização do casamento gay, eu e uma amiga entramos em contato com a Academia para que se pudesse rever o conceito de casamento no dicionário. Porque casamento não é mais a união entre um homem e uma mulher. É a união entre duas pessoas. Você não imagina a quantidade de mensagens raivosas que chegaram pra gente e claro que a Academia não aceitou. No Brasil, é mais grave ainda, porque a imprensa não usa a palavra presidenta, que é uma palavra que existe e está registrada.

Há alguma interferência dessas ações políticas no plano da indústria cultural?

Sim, claro. Porque hoje, ainda que exista uma produções de filmes nacionais e fala em cinema brasileiro, cinema italiano, cinema argentino, cinema francês, esses filmes não chegam às pessoas. As distribuidoras não circulam estes filmes, porque elas também representam multinacionais.

Você já releu algo da obra de Saramago depois de sua morte?
Sim, já reli Saramago em alguns momentos depois de sua morte, mas não de uma forma ritual ou não para encontrar Saramago, porque ele já está dentro de mim, não vai sair. Tenho lembranças de todos os minutos, de todas as horas, de todos os dias. Reli porque precisava fazer trabalhos e artigos sobre ele. Não me comovo ao ler Saramago hoje, porque eu já o conheço, ele faz parte de mim.

Cena de 'José & Pilar', filme de Miguel Gonçalves Mendes
Cena de 'José & Pilar', filme de Miguel Gonçalves Mendes
Foto: Divulgação
Fonte: Terra
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