O diretor Walter Salles
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Salles reuniu representantes de 13 nações distintas para refazer a errática trajetória percorrida em 1952 por Ernesto Guevara, então estudante de Medicina em Buenos Aires, e seu amigo Alberto Granado. Em fevereiro de 2003, nos confins da Amazônia peruana, vai chegando ao fim a fascinante viagem iniciada quatro meses antes. Salles e seu primeiro escalão estão instalados no Eldorado Plaza, o único hotel confortável da úmida Iquitos.
O diretor só usa o hotel para escalas indispensáveis. No quarto, dorme cinco horas por noite, retoca mentalmente ao acordar as principais tomadas do dia, viaja pela internet em busca de informações relevantes e desce para o café da manhã sempre frugal. No saguão, circula pelas mesas distribuindo sorrisos e frases amáveis. Caminha pouco pelas ruas de Iquitos, que já conhece razoavelmente: está na cidade pela quarta vez. O universo preferencial de Salles é formado pelos sets espalhados por Santa Maria de Ojeal, lugarejo redesenhado para recriar-se a antiga San Pablo.
Fincada rio abaixo, a dezenas de quilômetros de Santa Maria, a pequena vila de São Pablo entrou na biografia de Guevara como cenário do rito de passagem vivido pelo jovem viajante. Ali começou a consolidar-se o homem inconformado com as disfunções sociais da América do Sul, camufladas por matas e montanhas. Ali começou a gestação do líder guerrilheiro cujo rosto continua a multiplicar-se, eternizado no pai de todos os pôsteres. A partir daquela manhã de quinta-feira, e pelas 72 horas seguintes, as filmagens se concentrarão nesse momento da vida de Guevara.
A equipe inteira não consegue conter a excitação com a iminência do clímax resumido essencialmente em duas cenas. Na primeira, Guevara atravessará a nado um braço do Rio Amazonas, para comemorar seu 24º aniversário em companhia dos doentes internados no leprosário existente na margem oposta do rio. "É um dos instantes fundamentais do trajeto", informa o diretor.
Na segunda cena, Guevara e Granado se despedem dos moradores do lugar. A bordo do Mambo Tango, embarcação improvisada pela dupla, acenam melancolicamente para figuras que não tornarão a ver, mas marcarão para sempre a vida dos dois. "Ernesto faz uma opção de enorme carga simbólica quando resolve passar o aniversário com os leprosos, os deserdados que habitavam a parte oposta ao lado considerado sadio", diz Walter Salles. "O gesto marca a ruptura de um tipo de apartheid que, até então, ninguém ousara enfrentar".
A viagem iniciada em Buenos Aires oito meses antes, com Guevara e Granado cavalgando a motocicleta que apelidaram de La Poderosa, fora uma idéia concebida por dois jovens à caça de aventura. Em seu epílogo, depois de terem percorrido regiões de cinco países, haviam sofrido mudanças profundas. "Esse processo de compreensão e de cristalização do mundo é o coração do filme", afirma Salles.
Em Iquitos, a equipe encarregada das cenas derradeiras de Diários... junta 69 profissionais. Na maior parte da viagem, essa escolta do diretor oscilara entre 15 e 18 integrantes. Mas não se deve esquecer os figurantes.
Eles não são poucos em Santa Maria. As filmagens de quinta-feira prevêem a movimentação de multidões. Cerca de 70 amadores vão compor um painel da população nativa. Cuidadosamente maquilados, mais de 100 encarnarão os leprosos da velha San Pablo. (Dois deles efetivamente estiveram internados lá. Resistiram para reviver como ficção o passado real). Salles tem de conferir-lhes atenção idêntica à merecida por atores da primeira fila.
Guevara é vivido por Gael Garcia Bernal, conhecido dos cinéfilos pelo bom desempenho em Amores Brutos, E Tua Mãe Também e O Crime do Padre Amaro. Alberto Granado retorna aos 29 anos e reencarna em Rodrigo de la Serna, uma descoberta de Salles. "A começar pelo co-protagonista, todos os outros surgiram em testes ou em peças de teatro que pude ver em diversos países do continente", conta o diretor. "Aliás, é um privilégio constatar como afloram talentos na América Latina".
Não é o caso, naturalmente, dos figurantes que o esperam num recorte do rio em Santa Maria. São leprosos que avistam Gael/Guevara ainda no meio da travessia. Segundo o roteiro, devem aproximar-se da margem - uns mais agilmente, outros em passos trôpegos - para estimular o jovem viajante a completar a proeza. Nada de gruas, nenhum equipamento ostensivamente sofisticado. Salles optara por filmar em 16 mm, com a câmera na mão. A leveza favorece os movimentos. De temperamento gentil, o diretor fala em voz baixa, quase aos sussurros, para explicar aos figurantes o que deve ser feito.
A um dos falsos leprosos, pede que não corra muito. A outro, que acelere as passadas. A um, recomenda gritar com menos estridência a frase que o script lhe reserva: "Venga, Ernesto!" A outro, solicita mais ênfase na mesma exclamação. A cena é repetida sucessivamente. (No dia seguinte, Salles só ficaria satisfeito com o resultado depois de filmar 13 vezes a cena da despedida.)
Gael sai da água sem queixas, volta ao rio sem trair qualquer desconforto. "É muito bom trabalhar com um grande diretor e um bom amigo", diz, numa rara pausa para descanso, esse ator mexicano a caminho do estrelato. Gestos nitidamente espontâneos mostram que ambos se dão muito bem. Ao conversar com o ator, Salles coloca amistosamente o braço sobre o ombro do Guevara que escolhera. E Gael saúda o diretor com beijos na face. "Além de ótimo ator, ele é muito interessado por cultura, muito bem informado", elogia Salles. "Gosto de trabalhar com gente assim".
Longe das câmeras, vestindo uma camiseta branca um tanto puída, calça cáqui larga e sapatos de sola grossa, Gael exibe sem retoques o jeito de menino. Com um celular de última geração, liga para a mãe no México. Quer saber coisas da família. Numa primeira avaliação, é franzino demais para reviver um herói das selvas mesmo quando jovem. E lhe falta o brilho inconfundível daquele olhar.
Tudo muda quando entra em ação essa notável revelação. O olhar ganha intensidade, o rosto se torna decididamente másculo. Gael fica mais alto, mais forte e muito parecido com o Guevara que cruzou o braço do Amazonas. De la Serna é Alberto Granado durante as filmagens e fora delas, beneficiado pela impressionante semelhança física com o personagem original. A constatação é avalizada pelo próprio Granado, convidado por Walter Salles para acompanhar ao vivo, com a família, a conclusão de Diários de Motocicleta.
Aos 80 anos, Granado esbanja vitalidade, lucidez e paixão pela vida. Conta que, de San Pablo, seguiram de barco até chegar a Leticia, na Colômbia. "Ernesto decidiu voltar para a Argentina, eu fui para a Venezuela", conta, sorvendo o vinho de todos os dias. Eles se reencontrariam em Cuba, onde Granado ficaria para sempre. Ao lado de parentes e do jornalista Gianni Minà, editor italiano dos diários de Guevara, ele está feliz durante o jantar. Logo Salles se junta à mesa do restaurante do lodge que emerge entre as árvores. O lugar fora descoberto casualmente por um integrante da produção que passeava pelas matas. Confortável, aconchegante, com boa comida, essa fantasia na selva é agora refeitório da equipe.
Existe um restaurante exclusivamente para o almoço dos figurantes. O vilarejo agora tem muitas construções rescendendo a tinta fresca, que mais tarde abrigarão escola e pronto-socorro. Os requintes da infra-estrutura fazem do lugar um merecedor de medalha na modalidade "banheiro per capita". Mas nada supera em charme o espantoso lodge a poucas centenas de metros do rio que os peruanos chamam de Amazonas. Iquitos fica no centro de um colosso fluvial forjado por muitos rios com diferentes nomes e dimensões. Todos confluem para o Marañon, nome peruano do Amazonas. Mas os nativos resolveram simplificar as coisas e tudo passou a ser "o Amazonas". Melhor para a indústria do turismo do Peru. Menos complicado para Walter Salles.
Guevara não nadou nas águas que banham Santa Maria. Mas poderia perfeitamente ter dado por lá as braçadas históricas. O clima em fevereiro é o mesmo em toda a região: muita chuva, com intervalos secos para que gente de cinema possa trabalhar. Salles passara o dia com uma capa de plástico, mais adequada a um grumete que ao timoneiro. Aparelho de rádio nas mãos, deslocando-se pelos sets, emite ordens que exibem, nas alterações do tom de voz, a arte de comandar. Sabe ser enérgico e, quando preciso, mostrar quem manda. "Muita gente tem medo dele", diz uma integrante do time.
Ela está trabalhando pela primeira vez com o diretor. A assessora de muitos anos considera o chefe excepcionalmente exigente, mas esse traço não a desagrada. "É também por isso que faz filmes tão brilhantes", argumenta. Um deles tem o título impresso na singela camiseta branca que Salles está usando no jantar: Terra Estrangeira. Parece contente com o que fora feito - apesar das nuvens e de rápidos temporais - nas horas anteriores. Sorrindo, alterna frases gentis que afagam convidados e comentários sobre o filme. Só aquelas são publicáveis. "Não posso dar entrevistas até que o filme fique pronto e seja exibido em algum lugar", desculpa-se. "São ordens do sêo Roberto".
Refere-se dessa forma, queixosamente afetuosa, a Robert Redford, ator, diretor e, naquele momento, patrão da equipe concentrada em Iquitos. Dono da Wildwood, pequena produtora que realiza a cada ano um ou dois filmes em regime de completa independência, Redford escolhera o diretor brasileiro para chefiar o que seria, simultaneamente, uma viagem no espaço e no tempo. Convite aceito, Salles mergulhara no assunto com a volúpia dos obsessivos. Em temporadas na ilha, entrevistara Granado e sua família, aproximara-se dos descendentes de Guevara, lera o que existe sobre o tema. Fundira vários textos no roteiro e refizera a viagem de 1952 acompanhado pelo cordobês Carlos Conti, diretor de arte.
Iniciadas as filmagens, usara três motocicletas fabricadas em 1939, como La Poderosa. (A verdadeira, segundo o relato de Guevara, deu seus derradeiros urros em Valparaíso, no Chile). Ao longo do jantar, conta essas histórias, ilustradas por fotos, com a animação de quem pressente ter trabalhado com competência. "Espero que o filme tenha as qualidades e a urgência do documentário, como uma viagem que vai se desenvolvendo sob os nossos olhos", diz aos parceiros de mesa no lodge.
Ele também havia procurado respeitar cuidadosamente as características de cada região cruzada por Guevara e Granado. "A força do filme vai depender desse equilíbrio e da tensão entre o desejo de fidelidade histórica e o vigor narrativo do documentário", está convencido o diretor. A última cena viria poucas horas depois. O apagar dos holofotes serviria de senha para o banho noturno da equipe, incluído o chefe.
A cerimônia do adeus é sobretudo a tradução, em muitos sotaques, da alegria de quem sabe ter feito um bom trabalho. Salles prepara as malas para o embarque rumo a Los Angeles, onde o aguarda a demorada etapa de edição e montagem, certo de que tem nas mãos o material perseguido. Conseguira exatamente o que buscara durante mais de dois anos.
Há semanas, numa das poucas visitas feitas ao Rio nos últimos meses, esse carioca universal estava visivelmente otimista. "Acho que ficou bom", avisou. Para um perfeccionista vocacional como Walter Salles, especialmente rigoroso na avaliação da própria obra, tratava-se de um comentário animador. Robert Redford, contou, gostara muito do que vira. A estréia de Diários de Motocicleta no Festival de Sundance, em Utah, mostrou que ambos haviam contido o entusiasmo. O filme é ótimo.
Naquela semana em Iquitos, ao descer para o café da manhã no hotel, fora recebido com aplausos pelos integrantes da equipe. Nenhum festejo prematuro. É que Walter Salles, na véspera, batera fortemente a testa no barco. Com tonturas, submetera-se a uma tomografia. Mas já estava recuperado, pronto para exercer, com variações no tom suave, a conhecida voz de comando. A equipe estava expressando seu contentamento.
Ninguém poderia imaginar o que ocorreria no começo de 2004 em Sundance. No início da madrugada, abraçado a Gael e De la Serna, o diretor brasileiro de 47 anos comemorava, num frio que só lembrava Iquitos pelo avesso das coisas, a reação da platéia que assistira à primeira exibição de Diários de Motocicleta. Todos aplaudiram de pé. Walter Salles, chamado ao palco, é ovacionado. É provável que, por tudo isso, o filme chegue mais cedo às telas do Brasil. Já mergulhado em novo trabalho no Canadá, ele sabe que logo terá de interrompê-lo para falar do filme que acabou de nascer. São as imposições do sucesso.