'Bravura Indômita' faz homenagem ao gênero faroeste e acerta
- Carol Almeida
Fotografia em contraluz, corte de cena em demoradas fusões e panorâmicas do cenário árido de um Oeste ainda desbravado por homens que passavam a vida inteira vestindo uma só roupa para os invernos mais cruéis e os verões mais escaldantes. Tudo isso sob uma trilha sonora instrumental de pianos e violinos que preenchem lugares ermos tal como o uísque que distrai um homem de sua solidão. O Bravura Indômita dos irmãos Coen é o faroeste respeitando todas as premissas clássicas do gênero que deu identidade à América conquistadora. E é por seguir à risca essas regras sendo, no entanto, dirigido por uma dupla acostumada a dar várias camadas emocionais e plásticas à violência, que este filme se engrandece e ganha corpo de um dos títulos mais nobres desta temporada.
» Alugue ou Compre Vídeos no Terra Video Store
Produção com o segundo maior número de indicações ao Oscar este ano - 10 no total, incluindo Melhor Filme, Direção, Ator e Roteiro Adaptado -, Bravura Indômita vem sendo vendido pelas esquinas como um remake do filme homônimo de 1969, com John Wayne no papel que hoje é de Jeff Bridges. Mas ainda que apresente cenas bem parecidas, quando não idênticas, à versão de 69, o filme dos Coen tem identidade própria e parece ser mais uma adaptação do livro de 1968 escrito pelo Best-seller Charles Portis do que um decalque da primeira leitura cinematográfica.
A nova versão, por tudo que ela apresenta em sua ficha técnica, é daquele tipo difícil de errar: elenco magistral, roteiro de diálogos sagazes e quase líricos em suas mensagens diretas, fotografia com cor de sol se pondo, montagem à moda antiga e dois diretores que souberam tirar o chapéu para o conceito que existe por trás de um filme de faroeste, dos tempos em que eles eram feitos para homens do porte de John Wayne e Clint Eastwood. Mas no topo de tudo isso temos ela, a história a ser contada, aqui representada pela incrível fábula de uma menina que decide, na omissão de justiça superior, vingar a morte de seu pai, dando o troco ao assassino na mesma moeda.
Jeff Bridges, nosso novo macho de respeito, é o homem que ela escolhe e contrata para prestar esse serviço sujo. No papel de um US Marshall, uma espécie de delegado federal cujo distintivo e função ainda persistem ao tempo como símbolo dessa nação onde lei é palavra doce em discursos sobre liberdade, Bridges é Rooster Cogburn (o nome já sai da boca como um latido de cachorro brabo). Notoriamente pouco dado a prosas e bastante afeito a uma garrafa de uísque, ele é famoso também por atitudes pouco piedosas diante dos criminosos que persegue. Cogburn é feito de pedra, pólvora e álcool, num terra que engole seus pecados com poeira.
O vemos pela primeira vez tal como a narradora dessa trama o vê: sentado como testemunha de um tribunal que o acusa de ultrapassar o limite de seu serviço em proteger os fracos e oprimidos. "Senhor Cogburn, em quatro anos como US Marshal, em quantos homens o senhor atirou?", pergunta o promotor da cidade. No que nosso anti-herói responde em resmungo: "Atirei ou matei?" A conta, dos tiros ou das mortes, foge à sua memória e essa atitude displicente quanto à vida alheia conquista a mais indômita das personagens, a própria Mattie Ross, vivida por uma Hailee Steinfeld (hoje aos 14 anos) que sabe domar seu papel com pulso e voz firme. Sua indicação ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante é justa, mas é de se questionar o atributo de coadjuvante. Afinal de contas, a jovem Mattie é a protagonista da história e está em todas as cenas do filme.
Com uma rara habilidade em convencer e negociar seus interesses, Mattie convence o bronco Cogburn a assumir a tarefa de capturar Tom Chaney (Josh Brolin), bandido este também procurado a preço de ouro pelo assassinato de um senador no Texas. E quem está atrás da recompensa é o vaidoso LaBoeuf (Matt Damon), um cavaleiro todo organizado em suas roupas, cachimbo, chapéu no lugar. Ao contrário do que foi acertado na transação paga por Mattie, Cogburn e LaBoeuf partem à caça de Chaney deixando a maior interessada para trás.
Não contente em ter sido subestimada, Mattie protagoniza a cena da grande virada de roteiro. Montada em um cavalo tão jovem quanto ela, a moça cruza um rio quase completamente debaixo d'água, enquanto é assistida pelos dois caubóis. A estética, a posição da câmera e até mesmo os atores parecem, neste momento, ter saídos de um filme de Sergio Leone.
A perseguição por Chaney, como é de se esperar, toma rotas inesperadas, mas não estranhas o suficiente para evitar um laço familiar orgânico entre Mattie e Cogburn. Com ou sem LaBoeuf, os dois funcionam com uma lógica à parte e, no silêncio inebriante do deserto, experimentam um entendimento mútuo do pai cujo único filho ele não mais conhece, e da filha que já perdeu seu pai.
As decisões que o roteiro dos Coen tomam parecem ser bastante ponderadas para que o filme não perca sua identidade maior do faroeste, o gênero que deu sentido, corpo e poesia ao ser destemido, selvagem e árido do Oeste. O desfecho, distinto do final do título de 1969, é corajoso e verdadeiro. Dignifica ainda mais os personagens dessa história cheia de mensagens pouco subliminares.