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'Cisne Negro' é obra-prima de Aronofsky feita de som e fúria

27 jan 2011 - 16h47
(atualizado em 3/2/2011 às 16h08)
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Carol Almeida
Direto de Los Angeles

Contrariando as angústias de Narciso, Nina não acha feio o que não é espelho. Ela acha o que sempre teve medo de procurar. E isso não é feio, mas sim assustador. Pois que o espelho, não sabe a protagonista, é essa armadilha que tranca a imagem de quem você acha que é. E mais perigoso ainda, de quem acha que pode ser. É na poesia visual desses reflexos, projeções de nossas ideias e medos sobre nós mesmos, que Darren Aronofsky dirige Cisne Negro, filme que é desde já sua grande obra-prima, personificada na atriz que nos intimida tamanha a imersão na personagem. Natalie Portman, favoritíssima a levar o Oscar de Melhor Atriz este ano, abdica de seu corpo, sua voz, seus olhos e qualquer vestígio dela mesma para se dar por inteiro aos reflexos quebrados de Nina, a bailarina cuja tensão psicológica é capaz de explodir sua cabeça para balés nunca dantes coreografados no cinema.

Cisne Negro, indicado para cinco categorias no Oscar deste ano (incluindo Melhor Filme e Melhor Diretor) não é exatamente um filme, stricto sensu. É sobretudo um grande espetáculo, de balé, de cinema e de poesia. Desses que, a cada sessão, merecia ser aberto e fechado com uma pesada cortina de veludo vermelho. O que Aronofsky faz é, na verdade, uma interpretação multidimensional do próprio Lago dos Cisnes, o épico balé de Tchaikovsky. Estamos falando de uma história sobre como, assim como a princesa presa no corpo de um cisne, nos enfeitiçamos facilmente com a fantasia que costuramos para vestir diante dos outros.

Nina, a bailarina que busca descontroladamente a perfeição do movimento, encontra a sua chance de provar a todos do que é capaz quando a prima ballerina da companhia, vivida por uma Winona Ryder ironicamente decadente, é forçada a sair de cena. Mas para ser a "cisne rainha", Nina precisa provar que é capaz não apenas de interpretar a contida e delicada Cisne Branca, como também pode lidar com a tempestividade e sexualidade da Cisne Negra.

Thomas, o coreógrafo e diretor da companhia vivido por um ator - Vincent Cassel - reconhecido por atuações extremamente físicas, está ali para beijar uma face de Nina e estapear a outra. À medida que reconhece seu talento para a Cisne Branca, ele vocifera contra a repressão emocional e sexual da bailarina que recusa a achar na perfeição os elementos do imponderável.

Aronofsky, um diretor cheio de altos e baixos no cinema, atinge aqui uma maturidade que longe de ser exclusivamente fílmica, é antes de tudo cênica. Enche todos os cenários dos já citados espelhos, esse elemento que é tão fundamental para o balé quanto para um filme de terror. Nos reflexos, o filme vai se construindo como um quebra-cabeças entre o ego, o id e o super-ego da protagonista, alguém que sofre de uma aguda crise com sua própria identidade e por isso mesmo, enxerga nos espelhos algo que vai muito além de uma imagem. Nesses momentos, sentimos por diversas vezes a vertigem de ver uma Natalie Portman tão absorta nesse figura despedaçada.

No entorno desse horror psicológico, Nina ainda precisa conviver com a mãe frustrada e com uma bailarina que parece incorporar toda a extroversão e sensualidade que lhe falta. Em ambas, ela encontra as personas que, de uma maneira estranha, parecem pertencer a ela própria. A mãe é uma mulher que vive com o fardo de ter abdicado da carreira de bailarina - que nunca teve - em nome da filha. Interpretada por uma Barbara Hershey com densidade para essa amargura, a personagem é um dos vários enigmas morais do filme - inveja ou admiração? ódio ou afeto? - reforçando a teoria de que para cada objeto, o sujeito cria olhares distintos que, sim, podem mudar o curso de como formamos nossas ideias.

Quanto à bailarina que logo se projeta como a rival de Nina, esta é ainda mais latente em sua projeção da imagem invertida. Lily é uma Mila Kunis tal qual a mesma Mila Kunis aparenta ser (ou como nos acostumamos a vê-la): sem correntes presas aos pés ou espelhos amarrando seus movimentos. Leve e sexy, ela sabe usar o perigo de seu corpo como virtude. Em outras palavras, ela é a fúria que move a espinha dorsal da Cisne Negra. E sem a fúria de Lily, Nina não consegue voar.

Com esses personagens, o filme vai sendo dirigido tal qual uma sinfonia que aos poucos cresce seu volume, acrescentando um instrumento de cada vez para, em desfecho, apresentar a orquestra completa de sensações e, novamente eles, reflexos. Cisne Negro, enfim, reforça aquela teoria de Lacan de que, para entender a dimensão mais ampla de nossa realidade, precisamos atravessar, tal qual uma bailarina que salta no ar, o excesso de nossas fantasias.

Natalie Portman, favorita a levar o Oscar de Melhor Atriz por 'Cisne Negro'
Natalie Portman, favorita a levar o Oscar de Melhor Atriz por 'Cisne Negro'
Foto: Divulgação
Fonte: Terra
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