"Tive muita apreensão", diz Maria de Medeiros sobre tema de documentário
"Eu tinha muita apreensão antes de começar a filmar, porque sabia que seriam temas dolorosos de se tocar", disse em debate, nesta quarta (14)
Atriz com vasto currículo na carreira, Maria de Medeiros se viu na pele de uma iniciante quando se propôs a filmar o segundo documentário de sua carreira, Repare Bem, um dos concorrentes à categoria Melhor Longa Metragem Estrangeiro do Festival de Gramado, exibido ao público na noite de terça-feira (13). Pudera: ao aceitar o convite da produtora Ana Petta, sua amiga de anos, a portuguesa que fez parte do elenco de Pulp Fiction - Tempo de Violência se viu na urgência de arrancar em depoimentos a sofrida história de Denise Crispim, ativista de esquerda cuja juventude acabou destruída pela ditatura militar brasileira, mais de 40 anos atrás.
"Eu tinha muita apreensão antes de começar a filmar, porque sabia que seriam temas dolorosos de se tocar", disse em debate, nesta quarta (14), a atriz de 47 anos, considerada um dos grandes nomes do cinema francês contemporâneo e atualmente em cartaz no Sesc Santana, em São Paulo, com a peça Aos Nossos Filhos. "Por estar muito assustada com a responsabilidade, revi as 9 horas de Shoah (clássico documentário de Claude Lanzman focado em depoimentos de sobreviventes do Holocausto da II Guerra Mundial) para me inspirar e ver como conduziria as entrevistas."
Mas nem isso deve ter sido suficiente. Repare Bem acompanha os depoimentos emocionados de Denise e sua filha, Eduarda, focando principalmente na morte de Eduardo Leite "Bacuri", ex-marido da protagonista, assassinado pela ditadura que dominou o País por duas décadas. Ao longo de pouco mais de 1h30, o espectador se vê diante de uma mãe sofrida e arrependida, cujo passado havia escondido por toda a sua filha, e de uma filha que até a vida adulta desconhecia sua origem devido a uma relação difícil com a genitora. Não raro, ambas, cada qual morando em um país - a primeira na Itália, a segunda na Holanda -, caem em lágrimas, demonstrando ainda ser muito dolorido tratar dos assuntos.
"Lembro que a primeira pessoa que entrevistamos para o filme foi a Eduarda. E logo na primeira vez que ela começou a chorar eu fiquei tão aflita que parei tudo, a abracei e deixei a filmagem de lado", lembrou Medeiros, que no mesmo dia assimilou uma lição básica para qualquer documentarista: nunca apertar o botão de pause. "Fui uma boba, porque o papel da câmera e do diretor é justamente receber o testemunho."
Bom que o aprendizado veio rápido. Nos dias seguintes, Medeiros começaria a colher depoimentos de Denise, mulher cuja fragilidade fica patente não somente diante das câmeras, mas também pessoalmente. Basta a ela recordar seu passado. "Eu não queria me expor", admitiu ela no debate, se esforçando para falar enquanto lágrimas escorriam pelo seu rosto. "Mas acabei tendo confiança na Maria por ela ser a pessoa que é."
Repare Bem faz parte do projeto Marcas da Memória, elaborado pela Comissão de Anistia, órgão criado pelo Ministério Público Federal, em 2001, com o objetivo de fazer reparação às vítimas da opressão no Brasil durante a ditadura. O longa, de produção simples, quase amadora, conta, apenas com o uso da imagem das entrevistadas e de fotos pessoais, todo o drama da família Crispim, da mãe de Denise, perseguida pela ditadura de Getúlio Vargas, à sua filha, que, nascida no exterior por ser herdeira de uma exilada política, nunca conheceu o pai, morto em 1970.
As histórias são recordadas nos mínimos detalhes e sem censura. Nomes são apontados, indignações escancaradas. A trilha sonora é rara, os próprios depoimentos dão conta da emoção pretendida pela diretora.
"Quando tudo aconteceu, eu tinha 20, 21 anos. Eu era muito nova, tinha toda a vida pela frente. Cheguei na Itália ainda com 24 anos, ainda vivi no Chile antes de Pinochet", contou Denise, sempre bastante emotiva com as lembranças. "Eu carregava muita culpa por ter sobrevivido, então, por muito tempo, não me sentia no direito de viver. Ao menos não os prazeres da vida."
Houve, ao menos, um ponto positivo. Foi graças aos depoimentos concedidos com muito custo que Denise finalmente conseguiu aliviar os traumas sofridos na ditadura. Hoje, ela enfim está de volta ao Brasil, de onde ficou afastada por mais de 40 anos. Além disso, o longa acabou por lhe dar forças para, assim como fizeram tantas outras vítimas do regime instaurado no Brasil em 1964, depor na Comissão da Verdade, na tentativa de, quem sabe, algum dia punir os responsáveis pela morte de seu primeiro marido e de tantos outros que se voltaram contra os militares na ocasião."Essa grande psicanálise que fiz para o documentário foi de fato a primeira que funcionou para mim. Foi um trabalho muito doloroso, mas o grande ser humano que é Maria me ajudou a botar aos poucos para fora tudo o que escondi por 40 anos", ela admitiu. "Mas foi mais do que uma terapia, porque descobri que tinha a obrigação de falar, de documentar essa realidade. Acho que o filme é ser muito útil, porque a sociedade brasileira tem o direito de saber o que aconteceu."
Para mostrar na tela a noção da origem simples de Denise, mulher de poucos bens que cresceu em um cortiço na cidade de São Paulo, Medeiros optou por uma estética sem caprichos, assumida pela própria como "tosca". "Este filme certamente tem esse lado tosco. É uma produção pobre, realmente feita com os meios que tínhamos. Ou seja, nada", a cineasta disse, aos risos. "Mas, ainda que tivéssemos os recursos, eu queria uma produção seca, enxuta. Afinal, é um filme de muita lágrima e seria até obsceno fazer extravagâncias com a câmera para fazê-lo."