61º Festival de Cannes

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Quarta, 21 de maio de 2008, 13h25

Cannes: filme aborda trauma pessoal e social

Orlando Margarido
Direto de São Paulo

No início de La Mujer sin Cabeza, a protagonista Verônica (Maria Onetto), uma dentista, atropela algo na estrada que não sabe o que é. Em estado de choque pára o carro, mas não consegue descer para averiguar o que aconteceu. Começa com esse acidente uma situação traumática que vai acompanhar a personagem por todo o filme de Lucrecia Martel, exibido na manhã desta quarta-feira na competição oficial de Cannes.

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É uma das poucas pistas que a cineasta argentina dá ao espectador para se situar em sua fita, que para muitos jornalistas aqui em Cannes se mostrou um tanto enigmática. A mulher madura e sem cabeça do título perde-a metaforicamente e esse processo tem a ver com uma lenda do norte da Argentina. "Ouvia quando era criança que quando uma pessoa passa por um choque violento a alma se desprende do corpo e fica no local onde se passou esse trauma", explicou Lucrecia.

"A minha questão no filme aborda como fazer para recuperar essa alma, um processo que segundo esse credo é muito complexo; para tanto, é necessário inverter o caminho do que aconteceu, voltar ao local e adquirir a percepção do que realmente se passou", completou.

No decorrer do filme, Verônica se debate entre buscar o que aconteceu e distanciar-se da verdade. Anuncia ao marido que atropelou algo na estrada, e ao voltarem ao local, descobrem tratar-se de um cachorro. Mas a mulher insiste que havia algo mais. É a essa percepção que a diretora de O Pântano e A Menina Santa, seus filmes anteriores, se refere.

¿Ao mesmo tempo em que ela tem para si essa desconfiança, ela também se atrela a noção de que ninguém suspeita que tenha ocorrido algo além do atropelamento de um cão; assim, ela se protege¿, apontou Lucrecia.

Enquanto vive o sentimento contraditório, a dentista apresenta ao público de modo pontual o cotidiano e os personagens da pequena cidade de Salta, onde Lucrecia nasceu e se passa a história, através dos hábitos religiosos, os encontros beneficentes, o lazer no clube etc.

São pequenos flashes na verdade, que muitas vezes passam no ¿exterior¿ do filme, fora do quadro principal, com diálogos nem sempre traduzidos para reafirmar o estado de solidão e dissipação de Verônica, que se desinteressa de tudo após o choque. Como nos filmes precedentes, a diretora repete alguns símbolos que assume como recorrentes, a exemplo da crítica à religiosidade, a piscina como um local de convivência que une a todos, uma festa que serve como um momento de expiação dos pecados, seja uma traição, seja uma mentira.

A diretora de 41 anos conta que a maior parte dos diálogos para o roteiro, especialmente para o personagem principal, está ligada a conversas com sua mãe, que para ela são sempre prolíficas e inquietantes. Relativiza, no entanto, a aproximação do filme com uma realidade argentina no momento, aliás comparação sempre colocada e que ele renega desde O Pântano. "Não acho que haja uma relação direta política com o quadro atual do meu país; penso que há isso sim a aproximação com uma situação social dos latino-americanos, quem sabe até de outros continentes, de circunstâncias históricas que nos levam a falar de temas próprios."

Ao ser questionada por uma jornalista sobre a idéia de possivelmente haver uma vítima, mas não um crime e um corpo descoberto, estar relacionada à ditadura, Lucrecia respondeu que procura se esquivar dessa discussão pelo fato de sua família não ter sido tocada diretamente pelo regime autoritário.

¿Ditadura é um tema muito complexo para se trabalhar num filme que tem várias camadas de representação como o meu; seria necessário descobrir um mecanismo único para dar conta de tamanho assunto, pois sensibilizar as pessoas, criar compaixão, é um processo longo e custoso¿, disse.

"A minha câmera está voltada para o microscópico, não para o coletivo; costumo dizer que tenho uma relação de médico com o cinema, por isso coloco a lente bem próxima do rosto do ator." Foi lembrado ainda um tom fantástico, no sentido de um contexto acima da realidade, que embala a história. Lucrecia confirmou que se interessa muito pelo registro a ponto de já ter pedido à produtora americana Miramax que considerem seu nome para a direção de um novo filme da série Alien. "Mas não obtive resposta."

Especial para Terra

Getty Images
Maria Onetto e Lucrecia Martel divulgam 'La Mujer sin Cabeza'
Maria Onetto e Lucrecia Martel divulgam 'La Mujer sin Cabeza'

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